FUI
MAIS FELIZ COM UM METICAL DA ANTIGA FAMÍLIA
Por: Albert Massango
Na nossa tenra idade, oito anos, naquela sala de aulas,
que ostenta velhice através das paredes pintadas horrorosamente com tinta
esferográfica, aguarelas, giz e outros químicos, que não os sei descrever,
sentávamo-nos, cinco dias por semana, para estudar.
Não nos interessava o luxo, aliás, a nossa sala só tinha
uma janela, empoeirada, com teias de aranhas misturadas com enferrujo - tal
janela não se abria - quando o calor batia suávamos, mas, mesmo assim, naquele
soalho espatifado, que albergava algumas larvas e formigas, colocávamos o nosso
trás para assistir às letras que o professor, de bata branca, mandava-nos
repetir várias vezes até que acertássemos.
Naquela sala, éramos cerca de oitenta alunos,
provenientes de todas partes daquele meu bairro suburbano, esquecido pelo
tempo, e tínhamos formas diferentes de conceber a aula – eu, por exemplo, era
indiferente aos ensinamentos do professor – não me interessava o que ele
mandava e deixava de mandar. O Trabalho para Casa (TPC) nunca me interessava, na
medida em que sempre levei a sério as minhas brincadeiras.
Motivado por alguns filmes, que via em casa, desde Jean-Claude
Van Damme à Sylvester Stallone (quando só existia videocassete), não só me
desinteressava o TPC, assim como passei a bater nas outras crianças, que eram
mais tímidas e mimadas – sentia-me um protagonista fílmico, e lobrigava o
professor como vilão, e os meus amigos personagens coadjuvantes.
Era apenas uma criança e não sabia o que me motivava a
bater nas outras crianças, sabendo que o professor, posteriormente, bateria em mim
com o seu bastão de madeira, o mesmo que ele usava para amedrontar os alunos
mais barulhentos, bem como aqueles medrosos que se purgavam nas calças porque não
sabiam pedir licença ao senhor professor, ou sabiam, mas não tinham coragem.
Muitas crianças, nos centros urbanos, crescem vendo Tom
and Jerry ou Tim Tim. No entanto, nós, crianças daquela escola, porque não
tínhamos acesso àqueles desenhos animados, em casa, bastava-nos assistir aos
filmes e às novelas, brasileiras, que os adultos viam. Portanto, não te
espantes quando te digo que via Van Damme ou Stallone, com apenas oito anos.
No meu grupo de amigos existiam aqueles que faltavam às
aulas, duas semanas por mês, no entanto, sem que os pais soubessem – estes eram
considerados os mais radicais pois não só batiam nas crianças alheias e se
recusavam de fazer o TPC, como eu, assim como mentiam aos seus pais.
Na pequena cantina da escola, sem muitas escolhas porque
não tinha outro lavor monetário senão um metical (na altura mil meticais), que
a minha mãe me dava às vezes, comprava quatro biscoitos, Zama-Zama, e convidava
os amigos para lanchar. Éramos tão unidos como a turma do Baker Street Irregulars, mesmo sem um Holmes.
Um metical, obviamente, não era muito dinheiro, todavia,
para quem só queria se alegrar, durante o recreio, tal como os outros meninos
que tinham um pouco mais, significava muita coisa. Aliás, porquê exigiria tanto
dinheiro para comprar um lanche se me faltavam calças e sapatilhas condignas?
Bastava um metical para que me sentisse um Hucleberry
Finn, no comando de todas brincadeiras que levava a cabo com a minha gentalha,
no intervalo maior.
Na manhã de hoje, ao despertar de sonhos inquietantes,
mas sem me ter metamorfoseado, dirigi-me à minha pequena estante de livros e ao
abrir um livrinho, amarelado e castigado pelo tempo, na página catorze, achei
um metical (mil meticais da antiga família), ostentando aquela imagem do Banco
de Moçambique – logo lembrei-me da escola primária, do professor de bata branca, dos filmes, dos zama-zama e constatei que fora mais fez quando ia à
escola mesmo sem saber porquê.