O
Novo Ano Velho
por: Lino A. Guirrungo
Uma das maiores mentiras nas sociedades modernas é pensar que
estamos protegidos pelas paredes das nossas casas. O mal é como o ar, está em
todo lado. É horrível pensar assim no primeiro mês de um novo ano, já que recentemente
renovamos as esperanças no réveillon.
Acabado de chegar à casa, ligo a televisão, depois de um dia igual
aos outros: sair pelas ruas à procura de uma oportunidade de trabalho e nada. Fico
feliz por não ter encontrado ninguém em casa. Moro sozinho, aliás, com o meu
pai (há dois anos que ele se divorciou, sendo eu o único filho maluco que
decidiu ficar) e deprimo-me sempre que vejo o seu rosto taciturno e cansado.
Pior que isso é quando ele faz aquela pergunta super constrangedora de se responder: “Filho, então, já conseguiste
um emprego?” Não culpo o velho, ele é uma boa pessoa, a vida é que é muito
complicada.
Não busco nada de especial na tela, ao que deixo ficar o canal que
achei em primeiro. Está saindo um programa de debate, desses com um
apresentador e três comentaristas. O debate é sobre o que se pode esperar de
2017 para Moçambique e para o mundo. Passados quinze minutos, farto-me de ouvir
aqueles tipos e desligo a TV. Não que o tema seja irrelevante, mas simplesmente
estou sem saco para ouvir a repetição da ladainha dos nossos comentaristas,
tipicamente parciais e superficiais. Observo a sala quase mórbida com o
silêncio e, de seguida, vou ao meu quarto pensativo.
No mundo, os cipriotas estão tentando se reunificar; um ditador em
Gâmbia, que havia aceitado a derrota nas eleições em 2016, não quer abandonar o
poder; um tipo porreiro, que fala português, vai liderar a ONU; os norte-coreanos
dizem que já podem testar o “brinquedo” que há muito desejavam: um míssil
intercontinental capaz de atingir a costa norte-americana; a Venezuela está de
rastos; os brasileiros já esqueceram o impeachment
a Dilma enquanto os sul-coreanos ainda festejam a imitação da moda brasileira.
Isso na tentativa de ignorar os assuntos mais badalados: ataques terroristas na
Europa; a desgraça da guerra na Síria; a saída do primeiro presidente
afro-americano da presidência dos EUA e a ascensão de um controverso milionário
à mesma presidência.
Aqui em Moçambique está tudo nos eixos ou nos extremos. Depois de muitas
rondas de negociações de paz, que só o meu pai sabe dizer ao certo o número
(ele vê telejornal como um viciado em drogas, nem o critico porque o velho nada
tem para se divertir), Dhlakama pôs temporariamente ordem no país. Foi só ele
querer parar com tudo que os seus homens lhe obedeceram. Há uma trégua
provisória na nossa guerra ou, como diz a imprensa nacional, na “tensão político-militar”.
O segundo termo é falso porque, vendo pessoas mortas depois que esta besteira
de guerra recomeçou, é preciso ser ou ignorante ou insensível para chamar a
tudo isso de “tensão”.
Depois de muito barulho com a descoberta, em abril de 2016, das
altas dívidas do Estado escondidas, Moçambique ainda aguarda o desfecho do caso
neste novo ano. Eu já estou apostando no desfecho. O bolo será mais restrições,
mais desemprego, mais comentaristas na TV a analisarem um eventual desaire
económico do país e menos projectos sociais do Governo. A cereja no topo do
bolo: ninguém será preso pela falcatrua das dívidas escondidas (ou, pelo menos,
quem interessa mesmo ser preso).
Da última vez que vi o Presidente da República (PR), Filipe Nyusi,
estava a discursar na Assembleia. Ao contrário do meu pai, poucas vezes vejo
televisão daí que raramente vejo o PR. No tal discurso, o Presidente afirmava que
“o Estado da Nação mantém-se firme”. Contrariamente a muitos, eu não achei a
frase má, mas considerei a expressão como a maior piada de 2016. Nem o Presidente
norte-americano, Barack Obama, fez-me rir tanto na Noite dos Correspondentes de
2016. Sempre disseram-me que o nosso Presidente era “boa pinta” e com um bom
senso de humor, agora não tenho dúvidas.
Para afirmar aquilo, com aquela convicção, era preciso muita
coragem e uma dose de descaramento que só os políticos têm. A verdade é que não
entendo como eles falam por nós se não sabem sequer se comemos ou não antes de
dormir. A propósito, agora entendo por que o meu velho não está em casa. Foi jantar
no lar da minha irmã, por aqui não haverá jantar hoje. Nada de especial.
Enquanto isso, os crimes “banais” continuam, como o roubo na casa
do meu vizinho justamente no Dia da Família (Natal). Na TV, apresentadores e
telespetadores julgam pessoas antes mesmo destas aparecem nos tribunais. “Há
que balançar o país”, é o argumento de um desses programas televisivos. É triste
e pueril, mas a rotina é bastante reconfortante, todo mundo gosta de julgar e
falar mal dos outros.
Tenho de admitir que há outras balelas mais grotescas nos canais
de TV de sinal aberto em Moçambique. A minha outra irmã (como também boa parte
das alunas do Secundário) reprovou, mesmo tendo obedecido, à norma da saia
larga que o anterior Ministro da Educação e Desenvolvimento Humano, Jorge Ferrão,
impôs. Ainda bem que foi demitido, não por eu achar que a sua substituição faça
grande diferença, mas porque penso que é ruim alguém atribuir à medida de uma
saia o mau desempenho escolar. O ex-ministro é um homem bem-intencionado e
entendi as suas motivações, mas acho que ele acreditou em demasia que os fins justificam
os meios. Há quem culpa o tamanho das saias pelos assédios e violações sexuais,
enfim, são mais uns a atribuir a culpa às vítimas e não aos agressores.
Não me espantaria se agora culpassem o pacato povo pelas dívidas escondidas
e não aos governantes. Nessa lógica de culpabilização da vítima, diriam que o
povo não foi suficientemente um bom escrutinador do Governo, daí as trapaças e
falcatruas. Risível como é óbvio.
Sinceramente, não espero muito deste ano. Provavelmente vai ser
melhor para alguns países e pior para outros. Gosto da ideia de um falante de
português a liderar a ONU, mas a paz da humanidade nunca foi prioridade para os
homens no poder, então, continuará a haver guerras pelo mundo fora. Cá em casa,
o país continuará bem nos limiares do Índice do Desenvolvimento Humano e a
guerra vai acabar quando Dhlakama e os vermelhos quiserem.
Enquanto isso, tenho de arranjar um emprego. Esse papo dos
políticos gananciosos e pessoas sem noção do “Moçambique real” falarem de os jovens
terem de ir aos distritos (como se os jovens não quisessem) é ridículo. Há
pouca atratividade em ir ao interior dos distritos, caso contrário íamos em
massa. Que perguntem ao meu melhor amigo, que é professor do aparelho do Estado,
como ele vive no interior da província de Nampula? Resumindo, sem água potável
por perto, sem eletricidade, bens de consumo absurdamente inflacionados e, o
pior, pouco acesso à informação. Diante dessas evidências, não entendo como
ainda há pessoas que ficam atónitas com a crescente periurbanização do país. Autoemprego?
Surpreendo-me como eu e o meu pai vivemos sem emprego formal (para não falar da
maioria dos moçambicanos). Óbvio que nos arranjamos. Talvez eu venha a ser um
Bill Gates com esses bicos, já houve quem enriqueceu com o negócio dos patos ou
dos doces nestas terras do Índico. Bom, pelo menos é o que o povo diz sobre
esses exemplos de “sucesso” empresarial de moçambicanos.
Os povos geralmente são fortes e corajosos. Sabem bem o que
esperar de um novo ano: enfrentar os problemas do ano anterior e velho. Os
moçambicanos comuns acreditam numa máxima da personagem, que é de um livro que gosto
muito, chamada Atticus Finch. Finch diz que “coragem é sabermos que estamos
vencidos à partida, mas recomeçar na mesma e avançar incondicionalmente até ao
fim. Raramente se ganha, mas às vezes conseguimos”.
Espero mesmo que Moçambique e nós, o seu povo, consigamos singrar.
Os políticos e os comentaristas de TV podem se ferrar (menos a pouquíssima
minoria séria desse grupo é claro).
Estou cansado e meio com fome. Deve ser por isso que pensei nessas
bobagens. Vou dormir, amanhã é um novo dia.
(Janeiro, 2017)
LAG//EAC
Boa Reflexão Lino, as realidades da pérola do indico foram bem colocadas...Abraços!
ResponderExcluirBem pensado
ResponderExcluirGostei ... Posso paratilhar????
ResponderExcluirEspectacular.
ResponderExcluirGostei.
muita força, irmão.