Uma análise sobre a democracia
pós-moderna, entre Norberto Bobbio e Giovanni
Sartori
1.Introdução
A reflexão sobre os sistemas políticos da
pós-modernidade tem, nos últimos tempos, suscitado diversas interpretações e opiniões.
Felizmente ou infelizmente, teoricamente, o ultraliberalismo triunfou sobre
outros sistemas de organização da vida social, tirando-nos, de certa forma, a
possibilidade de surgirem outras alternativas. Com a queda do muro de Berlim,
em 1989, a democracia “ganhou” e foi assumida como o caminho ideal. Entretanto,
anos depois, parece que existem promessas que o sistema não cumpriu e, do alto
do seu ceticismo, há quem já anuncia um alegado fracasso da democracia
representativa.
A democracia pode ser entendida como forma de
organização do governo na qual os cidadãos encontram espaços para manifestar
suas opiniões sobre as questões de interesse de sua comunidade. O presente artigo
pretende refletir sobre a democracia na perspetiva de Bobbio e Sartori, ambicionando
definir o conceito na conceção dos dois autores, tendo em conta a época em que
nos encontramos. Procuraremos trazer, também, a posição de Bobbio no que
respeita ao futuro da democracia, analisando as diferenças existentes entre a
democracia clássica, da Antiguidade (3000/3500 a.C – 476 d.C), e a democracia
moderna, dos tempos atuais.
Palavras-chave:
Democracia, Estado e Governo
2.Objectivos:
2.1 Objetivo Geral
ü Analisar
a democracia em Norberto Bibbio e Giovanni Sartori.
2.2 Objetivos Específicos
ü Definir
o conceito democracia em Norberto Bibbio e Giovanni Sartori
ü Indicar
os tipos de democracia (direta e indireta)
ü Apresentar
as diferenças existentes entre democracia moderna e antiga
3.Conceito de Democracia
O conceito de democracia é de origem grega e foi
cunhado, pela primeira vez na história da humanidade, há mais de 2400 anos. Na
altura, o termo democracia designava o sistema político “do povo”, uma forma de
organização social em que a soberania reside nas pessoas. Etimologicamente, o
termo deriva do grego Demokrata , sendo
Demo povo e Krata poder.
Embora tenha desaparecido durante muito
tempo com ascensão de outros sistemas de organização social, perdurou no
vocabulário político da história. Dentro desta longo período de tempo, a
democracia foi adquirindo diversos significados, relativos aos vários contextos
históricos.
Giovanni Sartori (1994) observa que, durante
percurso normal da história, a democracia sofreu várias mudanças no que
concerne a sua definição. “Quando
usamos a mesma palavra, somos facilmente levados a acreditar que estamos nos
referindo à mesma coisa, ou a algo parecido. No entanto, com respeito a
"democracia", isso implica passar”. (SARTORI, 1994:35)
O autor expõe a ideia acima partindo do
significado que o termo democracia tinha para própria sociedade grega. Sartori
(1994) observa que a democracia antiga era concebida numa relação intrínseca e
simbiótica com a polis. Este
reflexão do autor remete-nos a constatar que, efetivamente, o termo democracia
esta ligado ao seu contexto histórico e civilizacional.
Termo grego democracia designa, no
sentido etimológico, o poder (kratos)
do povo (demos). Demos significa “os cidadãos da polis,
da pequena cidade-estado. Kratos significa
forma de governo ou um dos modos de exercer o poder político. Democracia é,
assim, no seu sentido literal, a forma através da qual o poder político é
exercido pelo povo.
António Carlos Ribeiro, no seu artigo Democracia
Participativa, define a democracia como a forma
de organização do governo na qual os cidadãos encontram espaços para manifestar
suas opiniões sobre as questões de interesse de sua comunidade.
A definição acima remete-nos a uma
reflexão já generalizada do próprio conceito de democracia. De acordo com a
definição Ribeiro, saímos, portanto, de um conceito fragmentado, referente
somente a comunidade, para um conceito mais abrangente, referente a um Estado.
Segundo Sartori, “ se os gregos tivessem
concebido o Estado como nós, a noção de "Estado democrático" lhes
teria parecido uma contradição em termos. O que caracterizava a democracia dos
antigos era exatamente o facto de não
ter um Estado”. (SARTORI, 1994:35)
Portanto, as democracias antigas, a
segundo o autor, não nos podem ensinar coisa alguma sobre a construção de um
Estado democrático, muito menos sobre a forma de conduzir um sistema
democrático que compreenda muito mais que uma cidade pequena.
Para Norberto Bobbio, por sua vez, a
democracia é sistema formado por um conjunto de regras. Na conceção de Bobbio,
a regra da maioria é apenas um elemento utilizado para o cálculo dos votos em
uma democracia real. Dada a impossibilidade de se instalar uma democracia
direta nos Estados modernos, por conta da complexidade da sociedade, a
representatividade do poder torna-se necessária.
Assim, Bobbio sustenta que os
representantes eleitos não podem exercer mandatos imperativos, isto é, não
podem estar vinculados a interesses particulares e constata que esta proibição
é explicitamente violada, pois os representantes eleitos ficam vinculados aos
interesses das agremiações partidárias às quais são filiados.
3.1 Diferença entre Democracias Modernas e
Antigas
Para Sartori, entre as
democracias antiga e moderna não é apenas de dimensões geográficas e
demográficas exigindo soluções completamente diferentes mas também uma
diferença de objetivos e valores. Os homens
modernos, prossegue o autor, querem outra democracia, no sentido de que seu ideal de democracia não é, de
forma alguma, o mesmo dos gregos.
“Seria estranho, de fato,
se não fosse assim. Em mais de dois mil anos, a civilização moderna enriqueceu,
modificou e articulou suas metas valorativas… Como poderíamos pensar que hoje,
ao defender a democracia, estamos em busca dos mesmos objetivos e ideais dos
gregos? Como
Poderíamos não entender
que, para nós, a democracia encarna valores que os gregos não conheciam nem
tinham como conhecer?” (SARTORI, 1994:36)
A democracia Direta da Grécia Antiga é
impossível para a sociedade atual, não só por causa das condições geográficas,
mas, sobretudo, porque não há mais espaço para um debate público e ardo como
fazia-se na sociedade grega.
4. Democracia Direta e Indireta
A democracia direta é uma forma de
organização na qual todos os cidadãos podem participar diretamente no processo de tomada de
decisões. A antiguidade clássica, como já referimos, apresentava esse tipo de
democracia. O exemplo mais marcante das primeiras democracias diretas é a de Atenas, onde o povo se reunia nas praças e ali tomava decisões políticas.
Na Grécia antiga, o povo era composto por pessoas com título de cidadão
ateniense. Porém, mulheres, escravos e mestiços não tinham direito a esse
título, exclusivo para homens que fossem filhos e netos de atenienses.
4.1 Democracia Indireta
Democracia indireta ou representativa é o exercício do poder político
pela população eleitora não diretamente, mas através de
seus representantes, por si designados, com mandato para atuar em seu nome e
por sua autoridade, isto é, legitimados pela soberania popular.
Pela
impossibilidade da participação pessoal de todos que fazem parte de uma
comunidade, por excederem as proporções da mesma, tanto geográficas como em
número, é o ato de eleger um grupo ou
pessoa que os representem e que se juntam normalmente em instituições chamadas
Parlamento, Câmara, Congresso ou Assembleia. Usualmente, esse lugar de
representante, de um povo ou uma população ou comunidade de um país ou nação, para agir,
falar e decidir em “nome do povo”, é alcançado por votação.
Este tipo de
democracia é característico da era moderna. O conceito moderno de Democracia política no Ocidente é este, a da Democracia representativa
dominada pela forma de democracia eleitoral e plebiscitária, e na sua maioria é
dirigida para aquela que chamamos Democracia liberal que dela faz
parte. Embora, apesar de sua aceitação bastante generalizada desta última,
sobretudo no pós-Guerra
Fria, ser apenas uma das formas de representação balanceada de interesses,
compreendida num conceito global de isonomia.
Para Sartori, dizer que a democracia antiga era a contrapartida da polis é dizer
também que era uma “democracia direta. Atualmente, Todas as nossas democracias
são indiretas, isto é, são democracias representativas onde somos governados
por representantes, não por nós mesmos.
Segundo Sartori,
“ É evidente que não devemos tomar a noção de democracia directa (e de auto
governo) de forma muito literal e supor que, na cidade antiga, os dirigentes e
os dirigidos eram idênticos”. (SARTORI, 1994:37)
Sartori (1994) observa que a confusão de
todas as questões humanas, a democracia da Antiguidade era a maior aproximação
possível de uma democracia literal onde os governantes e os governados estavam
lado a lado e interagiam uns com os outros face a face. De acordo com o autor a democracia direta permite a
participação contínua do povo no exercício
direto do poder, ao passo que a democracia indireta consiste, em grande
parte, num sistema de limitação e
controle do poder.
Para
Sartori, as democracias atuais existem os que governam e os que são governados;
há o Estado, de um lado, e os cidadãos, do outro; há os que lidam com a
política profissionalmente e os que se esquecem dela, exceto em raros
intervalos. Este fenómeno, que é contrário as democracias antigas, torna menos
profícuo do sistema democrático.
Segundo Luciano José Gonçalves Moreira (2010), em
seu artigo Democracia
Representativa: Problemas e alternativas no século XX, “ a falta de
identificação do povo com os governantes, juntamente com a precária preparação
– tanto do eleitorado quanto dos candidatos – para a participação política,
provoca um desequilíbrio no ideal de funcionamento da política, pois, nem os
representantes seguem o que fora estipulado, menos ainda, os representados
sabem como funciona o jogo político, ficando assim descrentes.
6.Importância da Democracia num Estado De
Direito
Importa primeiro, antes de mais, definir o que
seja um Estado de Direito. Um Estado de Direito
é qualquer Estado que garante o respeito das liberdades civis, ou seja,
o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, através do
estabelecimento de uma protecção jurídica. Em um estado de direito, as próprias
autoridades políticas estão sujeitas ao respeito das regras de direito.
6.1 O Governo das Leis e o Governo dos Homens
em Bobbio
A ideia do Estado de Direito da maneira como hoje
é conhecido, na visão de Bobbio, é em decorrência de um extenso processo da
evolução da forma como as sociedades foram se organizando ao longo dos séculos,
que já no século V a I a. C, Sócrates, Platão e Aristóteles já formulavam bases
para a teoria do “Estado Ideal”, refletindo sobre a melhor forma de organização
da sociedade para o atendimento do interesse comum.
Segundo Joaquim José Gomes Canotilho (2011), um Estado de
Direito tem de estrutura-se num Estado de Direito democrático, isto é, como uma
ordem do domínio legitimada pelo povo. A articulação do direito e do poder no
estado constitucional significa que o poder do estado deve organizar-se
exercer-se em termos democráticos.
Bobbio, por seu
turno, entende que a introdução da democracia num Estado de Direito é a participação
e envolvimento dos cidadãos no sistema político ou administrativo que abrange
mecanismos de autogestão, ou gestão delegada nas associações de cidadãos por
parte dos poderes públicos, a mecanismos de comunicação e de escuta recíproca
entre governantes e governado
Mas esta ilação leva-nos as questões: “qual o melhor
Governo, o das leis ou o dos homens?” As diferentes respostas a esta pergunta
constituem um dos capítulos mais significativos e fascinantes da filosofia
política.
Para começar, para Bobbio, “é conveniente perceber que
esta pergunta não deve ser confundida com aquela outra, não menos condicional,
dedicada a saber qual é a melhor forma de governo. Desde a célebre disputa
entre os três príncipes persas, narrada por Heródoto, para definir se é melhor
forma de governo esteve sempre voltada para a contraposição respetivamente das
virtudes e os defeitos da monarquia, da aristocracia e da democracia, e
eventualmente para a superação do contrate entre elas através do delineamento
de uma forma de governo” (BOBBIO:1984: 59).
Esta discussão assume como critério de avaliação e
de escolha o número de governantes. Mas cada uma das três formas seu reverso
uma forma má, a monarquia na tirania, a aristocracia na oligarquia, a
democracia na oclocracia ou governo de ralé. Isto implica que para formular um
juízo sobre melhor forma de governar é preciso que se leve em conta não só
quais e quantos são os governantes, mas também seu modo de governar.
A alternativa “governo das leis ou governo dos
homens?”, para o autor, diz respeito a este segundo problema. Não à forma de
governo mas ao modo de governar. Em outras palavras, introduz um diferente tema
de discussão e procede sob a insígnia de uma outra distinção: aquela entre bom
e mau governa. Pode ser de facto formulada do seguinte modo: “Bom governo é
aquele em que os governantes são bons porque governam respeitando as leis ou
aquele em que existe boas leis porque os governares são sábios?”
O principal argumento em favor da tese contrária à
superioridade o governo dos homens sobre o governo das leis aparece na crítica
que, nesta passagem, Aristóteles lança aos defensores do poder régio. A crítica
é claramente dirigida à tese sustentada por Platão no Político. Este diálogo
platónico propõe-se a estabelecer a natureza da “ciência régia”, ou seja,
daquela forma de saber cientifica permite, a quem a possuam, o exercício do bom
governo.
Como se vê, quem sustenta a tese da superioridade o
governo dos homens alerta completamente a tese do adversário: o que constitui
para este último elemento positivo da lei, a sua “generalidade” torna-se para o
primeiro o elemento negativo, na medida em que, exactamente por sua
negatividade, a lei não pode abarcar todos os casos possíveis e acaba, assim,
por exigir a intervenção do sábio governante para que seja dado a cada um que
lhe é divido, O outro porém, por sua vez, pode defender-se alegando o segundo carácter
da lei: o facto de ser “sem paixões”. Com esta expressão, Aristóteles quer
demonstrar que onde o governante respeita a lei não pode fazer valer as próprias
preferências pessoas.
Em outras palavras, para Bobbio, o respeito à lei
impede o governante de exercer o próprio poder parcialmente, em defesa de
interesses privados, assim como as regras da arte médica, bem aplicadas,
impedem os médicos de tratar os seus doentes conforme sejam eles amigos ou
inimigos. Enquanto o primado do homem o protege da aplicação indisciplinada da
forma geral desde que, entende-se, o governante seja justo. A primeira solução
subtrai o indivíduo singularidade da decisão, a segunda o subtrai à
generalidade da prescrição. Além dos mais, assim como esta segunda pressupõe o bom
governante, a primeira pressupõe a boa lei.
O tema da superioridade do governo das leis percorre
soluções de continuidade toda a história do pensamento ocidental (mas com não
menor fortuna também a história do pensamento político na antiga China).
Uma das formas mais antigas de exprimir a ideia de um
bom governante é o termo grego “eunomia”, usado por Solón, o grande legislador
de Atenas, em oposição de “dosnomia”. Destacada no contexto de difícil e
incerta interpretação, a expressão mais
antiga entre os célebres, depois tornada infinitas vezes pelos modernos, ao
império da lei (Signoria della legge), está no fragmento de Píndaro, propagado
com o título Nomos Basiles, que se inicia afirmando qual a lei é rainha de
todas as coisas, tanto das mortais das imortais. Entre as passagens canónica
que a idade clássica transmitiu às ideias sucessivas, deve-se recordar o texto
de Cícero, segundo o qual “Omnes legum servi sumus uti liberi see possumus”.
Para completar este discurso, Bobbio destaca que “
deve-se ainda refletir sobre o facto de que por “ governo da lei” se entendem
duas coisas diversas embora coligadas: além do governo sub lege, isto é,
mediante leis, ou melhor, através da emanação (se não exclusiva, ao menos
predominante) de normas gerais e abstratas. Uma coisa é o governo exercer o
poder segundo leis preestabelecidas, outra coisa é o governo exercê-lo mediante
leis, isto é, não mediante ordens individuais e concertas” ( BOBBIO, 1984:58).
Bibliografia:
BOBBIO, Norberto, O Futuro Da Democracia, 9ª ed, Paz e Terra, Lisboa, 1984,207 p.
SARTORI, Giovanni,.
A Teoria da Democracia Revisitada: o
debate contemporâneo. v. 1, [s. l.], Editora Ática, 1994.
SILVA, Pedro Gustavo de Sousa. Teorias da Democracia: contribuições de Sartori, Dahl e
Schumpeter, 2008; disponível em: http://www.urutagua.uem.br/015/15silva_pedro.pdf
( consultado em 19 outubro de 2015 pelas 12:00)