A
Promessa
Por:
Jorge Azevedo Zamba
Anteontem
Fui
educado para acreditar no concreto e nas minhas convicções. Antes do meu
nascimento, o mundo já havia assumido um semblante que deus desconhece. Confesso
que morei numa igreja, na verdade era um dos confidentes do pastor. Mas no dia
que me faltou dinheiro fui escorraçado da casa de deus. E juro que tentei até o
suicídio. Seria um descanso eterno que romperia o incómodo que eu constituía
para os outros. Seria uma oportunidade flagrante para levar comigo as
lamentações e frustrações da vida.
Voltei
para casa, a minha verdadeira casa. Quando cheguei naquela palhota, ressuscitei
a vontade de suicidar-me e comecei a preparar todo instrumento útil para quem
pretende acabar consigo mesmo. Tinha
medo, muito medo. Mas primeiro amarrei uma corda gigante num dos barrotes e
logo depois procurei por uma cadeira. Agora nada importava. Quanto ao meu
filho, saberia se cuidar.
Antes
de prosseguir apercebi-me que durante a minha ausência a poeira embrulhou tudo
que tinha, até a única cadeira que eu queria usar como um dos instrumentos para
o suicídio. Mas nada importava, afinal de contas era o meu último dia no mundo
dos vivos.
Antes
de subir na cadeira e consumar a fúria, pensei em escrever uma carta a explicar
as motivações do suicídio, mas a mente lembrou-me que não tinha nenhuma
motivação fundamentalmente aceitável, se não a de que estava a lutar pela vida
como se ela fosse eterna. Na verdade, estava cansado de lutar por ela, só isso.
Desisti porque pensei que a verdadeira carta seria redigida pelo meu cadáver
pendurado num dos barrotes.
Amarrei
a corda ao pescoço. A porta sugeriu-me que a fechasse imediatamente. Desatei a
corda e fui fechá-la. Jurei que mesmo se deus viesse pedir licença recusaria,
queria acabar logo comigo. Voltei a amarrar a corda ao pescoço. Quando estava
prestes a dar um chute na cadeira que suportava o meu corpo, alguém bateu na
porta. A tensão da porta desatou a corda que havia enrolado quase todo o
pescoço, tive de atender. Mas, antes disso, escondi todo o material.
Não
vou mentir. A pior dor não é suicídio, mas sim é ser descoberto a tentar
suicidar-se e, por isso, fiz de tudo para disfarçar o rosto falecido e as marcas
da corda no pescoço. Os pés denunciavam que não me sentia bem. Tentei medir a
fúria que tinha da vida e logo suicidei a ideia de querer me suicidar.
A
pessoa que bateu na porta era um camarada. Ainda que não fossemos camaradas, chamávamo-nos
de camaradas, era típico na minha época. Foi-me dito que expulsámos o
colonialismo, agora devíamos expulsar o Lambotismo, Imperialismo e Obscurantismo.
Tive
um convite formal para fazer parte do Grupo Dinamizador. Na verdade tive dois
por que quem fizesse parte deste grupo não devia ser afilhado de apartidarismo.
Bom, não queria mas todo homem válido aderia à mesma fileira. Em momentos de
embriaguez emocional, pensava que estava a servir à pátria. Mas quando a
embriaguez passava, num universo que entoava hinos revolucionários queria
manifestar o meu eu, mas ninguém permitia.
Vou
confessar uma coisa. Talvez, se estivesse vivo, não seria capaz de falar nesses
moldes. Como dinamizador era excelente por que fazia tudo o que os camaradas me
delegavam. Mobilizei as massas populares para aderirem à revolução. Mas
encontrei a morte a lutar pela manutenção da ideologia do partido de vanguarda.
Não vou contar como aconteceu, a minha morte foi vergonhosa. Mas enfim, agora
que comecei vou contar (estou morto e, apenas os loucos protestariam). Eu e um
camarada cujo nome a morte roubou.
Durante
a nossa rotina vimos um electrodoméstico, vou ser mais directo, apanhámos um
congelador
num apartamento abandonado. Eu fui o primeiro a ver e ele correu
para abraçar o electrodoméstico. Nada me restou senão lutar pela minha sorte e o
confronto custou a minha vida. No dia em que morri, enquanto me esbofeteavam
mortalmente, conseguia ouvir a voz de uns três ou quatro camaradas.
Ontem
Eu
morri há umas três décadas, não tenho certeza. Mas para o meu filho continuo
vivo e, ele acha que determino o futuro da sua geração, se bem que eu gostaria.
Mas ele ainda tem sorte. Passados uns anos, foi procurado para servir aos
interesses da pátria, devia pôr as roupas de um militar. Se eu dissesse que me dá
orgulho como filho, seria uma inverdade.
O
seu tempo era favorável para renunciar comodismos. Fiquei perplexo ao ver a
mudança da abordagem política. Agora, o meu filho em cumplicidade com os
superiores hierárquicos chamava de volta o que outrora condenávamos: O Imperialismo,
Lambebotismo e Obscurantismo.
Mensalmente
o meu filho visita-me nos meus aposentos eternos. Ainda que condene esse acto,
ele tem a sua crença e não posso deter isso. É estranho. Pensei que soubesse
que quando vivo eu não bebia.
Durante
a cerimónia jorra vinho na minha cabeça. Claramente que não me embriago porque
estou morto. Como queria responder aos pedidos do meu filho. Eu morri a sonhar
uma sociedade que promovesse uma luta contínua pela democracia. Vejo que morremos
juntos, eu e a minha utopia.
Hoje
Os
meus netos crescem indiferentes. Aqueles que prometeram uma sociedade
igualitária e democrática continuam com as promessas. Estou morto, mas ainda é-me
possível ver certos eventos.
Queria
ter um poder malicioso para chamar à atenção dos camaradas que mentiram e
continuam a mentir. Os mais velhos e jovens na política exprimem discursos
catastróficos. Até os vizinhos do aposento eterno opõem-se às manias dos
oportunistas acomodados na política.
Um
dos netos mais atentos tem lido sempre os meus escritos, essa é a outra
confissão. Quando vivo fui aspirante da poesia e romance e, ainda sou. Por
isso, deixei vários textos que na altura não foi possível partilhar com os
camaradas, até por que se tivesse tido ousadia de partilhar teria morrido um
Não
quero que o meu neto morra num confronto por um congelador. Ela merece ser um
intelectual que um dia poderá denunciar a podridão do sistema. Precisará de
provas e algumas estão nos meus escritos e os que extraviei enquanto
dinamizador. Terá de sobreviver na indiferença e na tentação contra os
arrojados.
Enfim…
Mesmo
neste aposento que a maioria teme, continuo a sonhar e quero ver os meus netos num
país livre da monarquia absoluta.