por: Estêvão Azarias Chavisso, para o Jornal Plataforma Macau
Há dez anos que o dia começa cedo para João Casa, 64 anos, um respeitado sapateiro em Maputo. O sorriso simples e bom humor do velho João, como é conhecido, não escondem o seu desespero face à subida do custo de vida, principalmente quando pensa nos seus cinco filhos que vivem no distrito da Manhiça.
“Estamos a passar mal”, lamenta o sapateiro, sobretudo para um deficiente, como é o caso, enquanto atende um dos poucos clientes na sua pequena barraca improvisada a poucos metros de uma vala de drenagem com água parada.
A distância de Manhiça até à capital moçambicana é de cerca de 80 quilómetros, um percurso que João Casa faz diariamente com muito esforço, na medida em que começa a ser “apertado” arranjar os 60 meticais (0,81 dólares) para cada viagem.
“Ninguém quer se dar o trabalho de levar um deficiente com uma cadeira de rodas”, declara o sapateiro, que, como todos, é permanentemente bombardeado por notícias más e teme pelo futuro da nação que viu nascer há 41 anos.
Dos Números à Machamba
Moçambique atravessa uma conjuntura marcada por um forte agravamento do custo de vida, uma crise política e militar que opõe o Governo e a Renamo, maior partido de oposição, a consequências dos desastres naturais, e ainda a perda de credibilidade no exterior após a descoberta de avultadas dívidas escondidas das contas públicas.
O efeito combinado destas crises resultou na desaceleração da economia para uma estimativa abaixo dos 4% em 2016, num país habituado a crescer acima dos 7% nas últimas duas décadas, e numa inflação galopante, que poderá chegar aos 30% no final do ano.
A descoberta, em abril, de 1,4 mil milhões de dólares de dívidas escondidas, contraídas a favor de empresas estatais entre 2013 e 2014 com garantias do Estado, fez com que o grupo de doadores do Orçamento Estado suspendesse os financiamentos, aumentando as incertezas num país que já foi apontado como um modelo.
Pelos mesmos motivos, o Fundo Monetário Internacional (FMI), também parou um programa de empréstimo e exigiu uma auditoria internacional independente às dívidas escondidas, já em curso, além de pesadas medidas de austeridade fiscais e monetárias.
O Governo assumiu em outubro a incapacidade de pagar as próximas prestações das dívidas escondidas e pediu aos credores uma reestruturação dos seus encargos, sem a qual o FMI não poderá reatar um novo programa de apoio, já que as suas próprias regras impedem o financiamento de países com dívida em esforço ou problemática, como é o caso.
A dívida pública de Moçambique disparou para os 130% do PIB, para o desespero de quem, como o velho João, pouco sabe de economia, mas sente o impacto de “todos essas manobras”.
Com ajuda da esposa, o sapateiro virou agricultor, apesar do desafio que é pegar numa enxada sentado numa cadeira de rodas. num terreno de trinta metros quadrados nos arredores da sua residência na Manhiça. A produção que sai da sua machamba (horta) é singela, mas alivia os gastos com produtos de primeira necessidade, alguns dos quais com aumentos de 30% ou mesmo muito mais nos últimos meses.
No entanto, a alternativa de João Casa foi fortemente abalada pela seca que fustigou Moçambique em 2016, destruindo metade dos seus canteiros e agravando a lamentável situação que já ameaçava a sua família e de pelo menos 1,4 milhões de pessoas em insegurança alimentar. “Temos apostado agora nas culturas mais fáceis de plantar. Mas não há nada”, observa o velho João.
O Professor que já não Almoça
Embora o Governo tenha garantido que os setores sociais estariam isentos de cortes, Luís Chilaule, professor na Escola Primária das FPLM – Forças Populares de Moçambique, diz que a crise começa a afetar a educação e o pagamento de horas extra.
“Eu próprio cortei o almoço”, lastima o professor, que abriu uma pequena banca de produtos alimentares na sua casa, e “não dá quase nada” mas cobre o custo de transporte escolar dos seus dois filhos.
Luís Chilaule diz que as dificuldades das famílias começa também ser visível na sala de aulas e as crianças pedem, por vezes, ajuda ao “pobre professor”, que sente a fraca assimilação da matéria dada.
As intenções de investimento caíram 48% no primeiro semestre de 2016 comparativamente ao mesmo período do ano passado, numa crise vertiginosa de múltiplas causas, que vêm de fora e de dentro, associando a queda dos preços das matérias-primas de exportação à forte desvalorização do metical face ao dólar e a problemas estruturais de Moçambique com um pobre ambiente de negócios e ainda um conflito militar no centro do país.
“Escutamos sempre informações de que a guerra está a piorar a situação e a afastar empresários”, comenta Luís Chilaule.
Em Maputo, a negociações entre as partes decorrem na presença de mediadores internacionais, mas ainda não houve consenso em nenhum ponto da agenda.
“Nós queremos paz. Só assim podemos realmente lutar contra a fome”, insiste o professor.
A população luta ainda contra condições de crédito proibitivas na banca comercial, cada vez mais penalizada pelo banco central, que aumentou em setembro as taxas de juro de referência em seis pontos percentuais, para 23,25% nos créditos e 15,5% nos depósitos, ainda assim abaixo da inflação.
O setor financeiro entrou em alarme com a falência determinada pelo Banco de Moçambique do Nosso Banco, detido pelo Instituto Nacional de Segurança Social, e que levou a uma corrida aos balcões dos depositantes que recearam ficar sem as suas pequenas poupanças noutras entidades.
Sobretudo, depois de saberem que o Fundo de Garantia de Depósitos apenas reembolsava clientes particulares num máximo de vinte mil meticais (270 dólares), deixando de fora as empresas, que perderam tudo.
Foi a segunda intervenção em dois meses do banco central, que antes tinha assumido a gestão do Moza, participado pelo português Novo Banco, devido à instabilidade dos seus indicadores prudenciais e agora está a ser preparado para venda.
O Banco de Moçambique já veio afastar qualquer razão para pânico e declarou que o restante setor financeiro permanece sólido, garantindo que os rácios de solvabilidade do conjunto de bancos mantém uma média de 14%, muito acima dos 8% mínimos exigidos.
Mas como consequência, a agitação na banca contribuiu para que Luís Chilaule desistisse de pedir um empréstimo para investir no seu negócio, preferindo esperar por “tempos melhores”.
Enquanto não chegam, tanto para o velho João como para o professor Chilaule, a esperança por dias melhores permanece, uma virtude típica de um povo que insiste em fazer o seu próprio manual de instruções para sobreviver.
FIM
Jornal Plataforma Macau
Jornal Plataforma Macau
Publicado em http://www.plataformamacau.com/mocambique/sobreviver-em-mocambique , a 02 de dezembro de 2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário