Literatura: O Retrato duma Sociedade Corrompida no “O Cairo Novo”, de Naguib Mahfouz
Assistimos, século passado, à ascensão de diversas correntes de pensamento,
para com destaque o niilismo, a psicanálise e o existencialismo. No entanto,
esta última, no repertório da literatura africana, faz-se manifestar
intensamente na narrativa de Naguib Mahfouz, até então o único autor de língua
árabe galardoado com o Prémio Nobel da Literatura.
A narrativa de Mahfouz, autor egípcio nascido em 1911, provavelmente tenha
obtido expressão a partir de Sartre e Camus, ambos filósofos existencialistas,
que, através das suas personagens e discursos na ficção literária, também obtiveram
o mesmo galardão, o maior que um escritor pode receber.
O existencialismo de Mahfouz, entretanto, está inteiramente virado para
questões africanas, em particular, as do Egipto dos meados do século passado, caracterizado
por enormes desigualdades sociais e económicas – com uma função pública
corrompida e altos índices de desemprego, bem como com a ascensão do governo totalitarista de Gamal Nasser.
Algumas dessas desigualdades, vividas no Egipto dessa época, são descritas
na obra O Cairo Novo, publicada em
1945, que, em português, chegou às livrarias através da Civilização Editora.
Trata-se de uma obra “agressiva” sob o ponto de vista religioso, pois o
autor questiona a ausência de “Deus” na vida daqueles (muçulmanos) que nele
crêem, mesmo de forma dogmática. Ora, a abordagem de Mahfouz sobre religião,
possibilitou o banimento de alguns dos seus títulos, como por exemplo, “Filhos
de Gabalawi”, em países árabes, chamaram-no infiel pelos crentes e, pelos
teóricos, niilista e existencialista.
Com recurso a uma linguagem simplista e de breve
compreensão, que Roland Barthes chamou de “escrita de grau zero”, na obra O Cairo Novo, Mahfouz coloca em debate
diversas temáticas mas, essencialmente, questões científicas e religiosas, catalisadas
por uma abordagem sociopolítica.
Logo no dealbar da narrativa, especificamente nas primeiras páginas,
através das personagens instituídas por este escritor egípcio, somos
introduzidos à antiga reflexão sobre ciência e religião. Temos, por exemplo, a
personagem Ali Taha – um ateu que se prende ao socialismo de Marx questionando
a religiosidade de Ahmed Bider, e Mahgoub Dyim.
“ […] Lembrem-se de que nos
encontramos na universidade, um local onde não é consentido que se faça referência
a Allah ou à paixão […] a universidade é inimiga de Allah. E quanta alegria
sentia ao ver os maiores filósofos – Platão, Descarte, Pascal e Bergson”.
No trecho a cima, manifesta-se a questão religiosa versus ciência (espaço
académico), em que Ali Taha questiona o apego excessivo dos seus colegas à
religião.
Ainda na esteira da religião, quando nos são apresentadas as desigualdades
sociais entre os egípcios, numa tonalidade sarcástica, o autor mostra-nos que a
maior parte da sociedade crente é desfavorecida e problemática, e, por seu
turno, a minoria (que não crê ou menos crê) é financeiramente estável e menos
deprimida.
Provavelmente, o autor queira colocar em causa a insignificância que nos
leva a crer numa força divina que não nos traz benefícios práticos senão
suscitar questões metafísicas e indecifráveis. Na verdade, esta ideia sustenta
o niilismo do mestre da língua árabe.
As acções nucleares da narrativa dão-se numa instituição de ensino (a universidade). Nessa instituição, faz-se presente, de forma constante, a temática relativa à academia e religião – chamemo-los códigos ideológicos da obra - não obstante a problematização das relações familiares.
As questões familiares e sociopolíticas observam-se no percurso de vida do protagonista Mahgoub, um dedicado muçulmano que tem a vida mergulhada no absurdo existencial e com capacidades limitadas para responder à uma necessidade biológica, a nutrição.
“Só existe uma única causa: a do
islão em geral e a do arabismo em particular. Engraxou os sapatos por uma
piastra, preço duma refeição completa. Contudo, não conseguia esconder o seu ar
doentio, a sua tez macilenta e o seu corpo emaciado”.
Para além da luta pela nutrição, conforme o parágrafo acima, o nosso
protagonista passa por momentos absurdos que o fazem “abandonar” os princípios
religiosos e familiares pela estabilidade financeira.
Aqui, temos a grande transformação na diegese, dado que aquele protagonista
devoto ao islamismo e arabismo se deixa corromper pelo sistema político, na
expectativa de ver a sua vida melhorada financeiramente.
Nesta fase da narrativa, ficamos com a ideia nítida de que o autor pretendia retratar a vida de uma personagem redonda, dotada de diferentes comportamentos – que se dividem entre o bem e o mal. E, em todos ângulos, tal pretensão foi bem conseguida, tornando Mahfouz, segundo a crítica da The New York Times, o Balzac do Egipto e provavelmente de África, ao lado de monstros como Wole Soyinka, Nadine Gordimer e J. M. Coetzee.
Em suma, O Cairo Novo é uma espécie de retrato do absurdo vivido por um jovem que perspectivava um futuro melhor sem esperar que o mesmo fosse submetido a corrupção, suscitando a seguinte questão: o que se pode esperar do futuro?
Aliás, importa realçar que Mahfouz, nesta obra, nos apresenta um
protagonista niilista disfarçado de religioso.
Autor: Alberto Massango
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