domingo, 30 de julho de 2017

Literatura: O Retrato duma Sociedade Corrompida no “O Cairo Novo”, de Naguib Mahfouz

Literatura: O Retrato duma Sociedade Corrompida no “O Cairo Novo, de Naguib Mahfouz

Assistimos, século passado, à ascensão de diversas correntes de pensamento, para com destaque o niilismo, a psicanálise e o existencialismo. No entanto, esta última, no repertório da literatura africana, faz-se manifestar intensamente na narrativa de Naguib Mahfouz, até então o único autor de língua árabe galardoado com o Prémio Nobel da Literatura.


A narrativa de Mahfouz, autor egípcio nascido em 1911, provavelmente tenha obtido expressão a partir de Sartre e Camus, ambos filósofos existencialistas, que, através das suas personagens e discursos na ficção literária, também obtiveram o mesmo galardão, o maior que um escritor pode receber.

O existencialismo de Mahfouz, entretanto, está inteiramente virado para questões africanas, em particular, as do Egipto dos meados do século passado, caracterizado por enormes desigualdades sociais e económicas – com uma função pública corrompida e altos índices de desemprego, bem como com a ascensão do governo totalitarista de Gamal Nasser.

Algumas dessas desigualdades, vividas no Egipto dessa época, são descritas na obra O Cairo Novo, publicada em 1945, que, em português, chegou às livrarias através da Civilização Editora.  

Trata-se de uma obra “agressiva” sob o ponto de vista religioso, pois o autor questiona a ausência de “Deus” na vida daqueles (muçulmanos) que nele crêem, mesmo de forma dogmática. Ora, a abordagem de Mahfouz sobre religião, possibilitou o banimento de alguns dos seus títulos, como por exemplo, “Filhos de Gabalawi”, em países árabes, chamaram-no infiel pelos crentes e, pelos teóricos, niilista e existencialista.  
                      
Com recurso a uma linguagem simplista e de breve compreensão, que Roland Barthes chamou de “escrita de grau zero”, na obra O Cairo Novo, Mahfouz coloca em debate diversas temáticas mas, essencialmente, questões científicas e religiosas, catalisadas por uma abordagem sociopolítica.  

Logo no dealbar da narrativa, especificamente nas primeiras páginas, através das personagens instituídas por este escritor egípcio, somos introduzidos à antiga reflexão sobre ciência e religião. Temos, por exemplo, a personagem Ali Taha – um ateu que se prende ao socialismo de Marx questionando a religiosidade de Ahmed Bider, e Mahgoub Dyim.

“ […] Lembrem-se de que nos encontramos na universidade, um local onde não é consentido que se faça referência a Allah ou à paixão […] a universidade é inimiga de Allah. E quanta alegria sentia ao ver os maiores filósofos – Platão, Descarte, Pascal e Bergson”.

No trecho a cima, manifesta-se a questão religiosa versus ciência (espaço académico), em que Ali Taha questiona o apego excessivo dos seus colegas à religião.

Ainda na esteira da religião, quando nos são apresentadas as desigualdades sociais entre os egípcios, numa tonalidade sarcástica, o autor mostra-nos que a maior parte da sociedade crente é desfavorecida e problemática, e, por seu turno, a minoria (que não crê ou menos crê) é financeiramente estável e menos deprimida.

Provavelmente, o autor queira colocar em causa a insignificância que nos leva a crer numa força divina que não nos traz benefícios práticos senão suscitar questões metafísicas e indecifráveis. Na verdade, esta ideia sustenta o niilismo do mestre da língua árabe.

As acções nucleares da narrativa dão-se numa instituição de ensino (a universidade). Nessa instituição, faz-se presente, de forma constante, a temática relativa à academia e religião – chamemo-los códigos ideológicos da obra - não obstante a problematização das relações familiares.

As questões familiares e sociopolíticas observam-se no percurso de vida do protagonista Mahgoub, um dedicado muçulmano que tem a vida mergulhada no absurdo existencial e com capacidades limitadas para responder à uma necessidade biológica, a nutrição.

Só existe uma única causa: a do islão em geral e a do arabismo em particular. Engraxou os sapatos por uma piastra, preço duma refeição completa. Contudo, não conseguia esconder o seu ar doentio, a sua tez macilenta e o seu corpo emaciado”.

Para além da luta pela nutrição, conforme o parágrafo acima, o nosso protagonista passa por momentos absurdos que o fazem “abandonar” os princípios religiosos e familiares pela estabilidade financeira.

Aqui, temos a grande transformação na diegese, dado que aquele protagonista devoto ao islamismo e arabismo se deixa corromper pelo sistema político, na expectativa de ver a sua vida melhorada financeiramente.    

Nesta fase da narrativa, ficamos com a ideia nítida de que o autor pretendia retratar a vida de uma personagem redonda, dotada de diferentes comportamentos – que se dividem entre o bem e o mal. E, em todos ângulos, tal pretensão foi bem conseguida, tornando Mahfouz, segundo a crítica da The New York Times, o Balzac do Egipto e provavelmente de África, ao lado de monstros como Wole Soyinka, Nadine Gordimer e J. M. Coetzee.

Em suma, O Cairo Novo é uma espécie de retrato do absurdo vivido por um jovem que perspectivava um futuro melhor sem esperar que o mesmo fosse submetido a corrupção, suscitando a seguinte questão: o que se pode esperar do futuro?

Aliás, importa realçar que Mahfouz, nesta obra, nos apresenta um protagonista niilista disfarçado de religioso.

                                                                                                 Autor: Alberto Massango


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