terça-feira, 14 de março de 2017

Crónica:Banho de Realidade
                                                        
                                                                   Autor:Lino A. Guirrungo

Acordo de madrugada em sobressalto diante do som alto asfixiante e ensurdecedor. Quando dormi, ainda estava animado com os copos e fumos que havia provado antes de deitar. Ainda sonolento, sinto que me dói algo mais importante além da cabeça. Agora já é impossível continuar a ouvir “Whatever People Say I Am, That's What I'm Not” dos Arctic Monkeys.
Estava claro que o agito havia se esgotado, pelo que desliguei o som quando já soava provavelmente “Riot Van” ou “Mardy Bum”, músicas com um ritmo mais leve (em consonância com o meu atual estado de espírito). Talvez eu devia colocar um outro álbum. Enquanto vou magicando sobre um novo álbum por ouvir, relembro a noite de ontem antes de chegar em casa.

No mesmo dia em que se recordam trivialidades históricas, como a demissão de Otto von Bismarck da Chancelaria da Alemanha; a independência de Paris em relação à Assembleia Constituinte em Versalhes; ou o sentenciação de Mahatma Gandhi na Índia a seis anos de prisão por desobediência civil, a minha ex-namorada comemora o seu aniversário. O convite à festa também a mim chegou. Talvez por orgulho ferido fui ao convívio, mas a dor dilacerante que agora sinto é um vestígio do meu arrependimento.
Quando lá cheguei ecoavam aqueles ritmos moçambicanos que obrigatoriamente nos fazem levantar para dançar, queimar calorias e esquecer o nosso quotidiano sedentário. Ou, para aqueles que não sabiam dançar, contemplar com ligeira inveja as curvas dos corpos tão talentosos na dança. Era de muita crueldade ou estoicismo sentar-se perante aqueles ritmos.
Foi no meio de um “pandza” bem animado que a vi, pela primeira vez, na festa. Não poderia ter havido momento melhor. Minha ex-namorada veio dançar comigo e continuava tão bela e ágil como nos nossos tempos de namorados.
Nascer no inferno não é uma escolha, mas todos somos incumbidos de o transformar num pequeno paraíso. Não consegui me conter diante de tanta exuberância e encanto. Parecia que os quatro meses após o término do nosso laço nunca tivessem acontecido.
Esqueci o inferno interessante de sexo desapegado com parceiras ocasionais e reencontrei o pequeno paraíso de contemplar olhos de um castanho muito vivo. Senti-me como Lázaro desfrutando das suas recompensas paradisíacas. Infelizmente as minhas recompensas não foram eternas.
Fomos interrompidos por um cara quase trintão e, certamente, o único usando um fato na festa. Parecia um daqueles tipos armados em sérios e responsáveis mesmo em ambientes tão descontraídos como aquele. Não entendi a ousadia do homem, até perceber uma ligeira cumplicidade e um beijo rápido entre os dois no meio da dança. Era claramente o novo namorado dela.
Lembrar a humilhação de ver a minha ex-namorada beijando o outro me traz à mente “Party Song”, uma faixa do álbum “Dear” de Keaton Henson. De seguida, decido escutar o álbum. Quem me dera se tivesse escutado aquela faixa antes da cerimónia. Jamais teria ido àquele evento e evitaria o resto. Ao ritmo calmo de “Oliver Dalston Browning”, “Nests” e o restante do álbum, volto a pensar na festa.
Quando tive a minha oportunidade de tirar tudo a limpo, parece que me esqueci do beijo dela com o outro. Eu confessei que ainda a amava e estava completamente espantado como ela havia esquecido o nosso laço de quatro anos em tão pouco tempo. Que o amor é complicado, isso é um clichê já velho. Agora me espanta recordar que ainda revelei sentir-me frustrado com outras garotas, mesmo com tantas descobertas que elas me ofereciam.
“Queres consolo ou queres um banho de realidade?”, perguntou-me ela com compaixão. “Realidade sempre”, respondi. Ela riu-se como com quem adivinhasse a minha reação e tivesse se preparado por um longo período para aquele momento.
Nós éramos muitos diferentes. Ela era uma pessoa bastante confiante de si própria e eu desconfiado de todo mundo, inclusive de mim próprio. Enquanto ela era animada e otimista, eu perdia-me em reflexões, leituras e músicas melancólicas (ansiando por uma pseudoliberdade).
Ela lembrou-me que quando começamos a namorar quase nada tínhamos em comum. Exceção de duas coisas: ambos gostávamos de sexo (aqui ela disse que eu trepava bem, talvez para aumentar a minha autoestima) e, estranhamente, gostávamos da mesma música. Não era do tipo a “música favorita” de ambos, mas era um ponto de união para pessoas de mundos culturalmente tão diferentes. Dançávamos e transavamos ao som da nossa música em comum, “Sexy Girl”, de Zico e Dj Ardiles. No final das contas, como ela afiançou, conseguimos nos amar e conviver.
“Amar e ser amado é tão doce quanto a água de coco”, assim começou a conclusão do seu discurso. “No entanto, não é preciso que o amor seja eterno para que seja verdadeiro. Ele tem o seu tempo de vida. Morre também à luz de algumas circunstâncias. Portanto, tu também vais me esquecer quando chegar a hora.” Achei-me em prantos depois de ouvir isso e, sorrateiramente, fugi até a minha casa.
Às vezes a vida nos mostra o seu dedo do meio quando nos apercebemos que conquistar o longamente sonhado não é o garante da felicidade. Eu havia alcançado a vida com a derradeira “liberdade”, tão ansiada por mim desde que li “O Fim do Amor Romântico”, de um tal de Estêvão Chavisso. Depois do fim do meu namoro tinha que me agarrar à alguma ideologia. Mas agora acho que aquele autor devia ser um frustrado dissimulado.
Sinto-me miserável com esta vida que levo. Quem vive a vida de forma absurdamente rotineira, torna-se triste e enfadonho; enquanto aquele que vive a tempo inteiro avassaladoramente, é perigoso e insensato. O caminho era o meio-termo de Aristóteles, pelo menos, até eu encontrar uma nova ideologia. A óbvia conclusão me atirou novamente ao sono.


(Março, 2017)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Opinião: AS MENTIRAS DO NOSSO TEMPO E O CAMINHO PARA O FUTURO

AS MENTIRAS DO NOSSO TEMPO E O CAMINHO PARA O FUTURO Créditos : AS por:Lino A. Guirrungo (Jan, 2019) Eu nasci pouco depois que...