Nada
Muda
“A chuva é uma bênção de Deus”. Aqueles que creem assim nos
lembram quando se apercebem que um evento pode ser prejudicado por essa faceta
da natureza. Esperava que não chovesse naquele São Valentim. Só isso poderia
tornar o meu dia ainda mais ruim.
No meu trabalho, como desde o primeiro dia que lá comecei, as actividades
eram muito frustrantes. Com mais tempo de experiência de desemprego que de
trabalho, mesmo com um inútil certificado de licenciatura, eu encontrara o “tão
procurado emprego” na restauração.
A minha formação havia me preparado para um mundo de produção científica que nunca chegaria de conhecer. Eu já estava resignado, precisava era de colocar comida na mesa urgentemente.
A minha formação havia me preparado para um mundo de produção científica que nunca chegaria de conhecer. Eu já estava resignado, precisava era de colocar comida na mesa urgentemente.
A rotina resumia-se a sorrir irrepreensivelmente e a ser agradável
com os clientes, minha obrigação como servente. Isso até era fácil, nossos
clientes não tinham culpa dos meus desaires. Aturar o meu patrão é que era um
saco. O tipo falava cada asneira recheada de palavrões que só mesmo o seu
salário miserável impedia-me de o esmurrar.
O clima de aparente cumplicidade entre os nossos casais clientes
era indescritível. Alguns dos seus sorrisos eram sinceros outros tão mecânicos
que se envergonhavam mesmo diante do meu sorriso profissional. Ouvi em algumas
mesas declarações de amor em línguas diversas, aliás, em línguas que eu falava
(Italiano, Changana e Francês). O amor era uma constante naquele dia e os
lucros garantidos para o meu patrão. De repente, descobri-me a pensar na minha
noiva Amália e na nossa relação.
Eu e a Amália também éramos tão
falsamente cúmplices como os casais que atendia. Mas isso foi antes do
abandono. Quando involuntariamente engravidei a minha noiva, os seus
parentes decidiram abandoná-la na casa dos meus pais. Eles disseram que era
a minha obrigação não só assumir o filho mas também noivar com a miúda.
Mentira. Queriam era, sim, se livrar do fardo económico que a filha
representava. Depois de um aborto espontâneo, Amália não regressou à casa dos
seus pais. E isso foi há um ano...
Recordei-me do último São Valentim que
tivemos juntos. Fomos jantar juntos num desses restaurantes luxuosos da cidade.
A melhor amiga dela frequentava os tais restaurantes com os seus incontáveis
namorados, pelo que a recomendou a ir comigo.
Eu estava furioso porque considerava o
São Valentim um dia sobrestimado. Depois de meses e meses sem nenhuma demonstração
de amor, ela me atirou um “eu te amo” e ainda pagou a conta sozinha. Isso me
comoveria em tempos, mas eu sabia que não nos amávamos e, pior que isso, sabia
como ela havia arranjado o dinheiro da conta.
Dois meses antes daquele estúpido
jantar, eu descobri que ela transava com um trintão bem-sucedido. Na época fui
consolado pelas palavras d'O Sétimo
Juramento, dizia lá a autora que “ser traído amanhã, é viver mais um dia de
ilusão. É melhor que a traição seja hoje para que a lealdade seja amanhã.”
Confrontei a miúda, na esperança de garantir um amanhã de lealdade que nunca
chegou de acontecer. Levei muito tempo a perceber o idealismo da frase.
Nossas irmãs são muito incompetentes no
quesito da fidelidade. Enquanto eu trabalhava para o meu ignóbil patrão, nos
turnos que ele bem entendia, minha noiva imitava a melhor amiga nas transas por
troca de bens.
No entanto, eu entendia a minha noiva.
Nunca a amei no verdadeiro sentido. Passei a maioria da minha vida esperando
amar uma mulher ideal, como uma dessas personagens de filmes de comédia
romântica de Hollywood, ignorando que um tipo muito magro e pobre que sou
também não é o protótipo das garotas. Depois de uns tempos de sexo passageiro
comigo, ela foi arrastada ao acaso para o lar dos meus pais, que sempre
brigavam sem razões aparentes, ainda assim melhor que o da sua casa.
Amália sempre me aturou, desde os
tempos em que eu ainda tinha manias de "intelectualizinho" de esquerda no
desemprego, até hoje que sou um jovem sem nada de esquerdismo, vazio e
pessimista. Seria de muita ingenuidade esperar que ela fosse fiel a um tipo
como eu. A verdade é que ela era uma volátil sem opções além de mim, enquanto
eu era um romântico solitário precisando de sexo. Nem me arriscaria a buscar
uma outra garota, até porque como diz o ditado: “mais moída ou menos moída, é
tudo farinha do mesmo saco”.
Quando retornei da transe da minha
relação, ouvi o meu patrão gritando comigo sem parar. Por muito descuido , quebrei um prato com refeições. A regra da casa era clara, o
prejuízo seria descontado do meu parco salário. E daí? Nada muda, nem no São
Valentim tão lucrativo! Minha vida continuava miserável. Nem me dei ao trabalho
de me desculpar, esperava apenas da minha hora de saída.
Já sabia bem o que faria naquela noite.
Se a noite não fosse “abençoada” com a chuva, iria fumar, beber um pouco e
depois procurar, no seu território, as praticantes da profissão mais antiga do
mundo. Mesmo ainda sendo minha noiva, Amália provavelmente estaria num jantar
com o maldito trintão. Assim por bem eu expectava, seria horrível encontrá-la
onde iria mais tarde.
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