segunda-feira, 27 de março de 2017

Crónica:Nada Muda

Nada Muda
           Por:Lino A. Guirrungo
“A chuva é uma bênção de Deus”. Aqueles que creem assim nos lembram quando se apercebem que um evento pode ser prejudicado por essa faceta da natureza. Esperava que não chovesse naquele São Valentim. Só isso poderia tornar o meu dia ainda mais ruim.
No meu trabalho, como desde o primeiro dia que lá comecei, as actividades eram muito frustrantes. Com mais tempo de experiência de desemprego que de trabalho, mesmo com um inútil certificado de licenciatura, eu encontrara o “tão procurado emprego” na restauração. 

A minha formação havia me preparado para um mundo de produção científica que nunca chegaria de conhecer. Eu já estava resignado, precisava era de colocar comida na mesa urgentemente.
A rotina resumia-se a sorrir irrepreensivelmente e a ser agradável com os clientes, minha obrigação como servente. Isso até era fácil, nossos clientes não tinham culpa dos meus desaires. Aturar o meu patrão é que era um saco. O tipo falava cada asneira recheada de palavrões que só mesmo o seu salário miserável impedia-me de o esmurrar.
O clima de aparente cumplicidade entre os nossos casais clientes era indescritível. Alguns dos seus sorrisos eram sinceros outros tão mecânicos que se envergonhavam mesmo diante do meu sorriso profissional. Ouvi em algumas mesas declarações de amor em línguas diversas, aliás, em línguas que eu falava (Italiano, Changana e Francês). O amor era uma constante naquele dia e os lucros garantidos para o meu patrão. De repente, descobri-me a pensar na minha noiva Amália e na nossa relação.
Eu e a Amália também éramos tão falsamente cúmplices como os casais que atendia. Mas isso foi antes do abandono. Quando involuntariamente engravidei a minha noiva, os seus parentes decidiram abandoná-la na casa dos meus pais. Eles disseram que era a minha obrigação não só assumir o filho mas também noivar com a miúda. Mentira. Queriam era, sim, se livrar do fardo económico que a filha representava. Depois de um aborto espontâneo, Amália não regressou à casa dos seus pais. E isso foi há um ano...
Recordei-me do último São Valentim que tivemos juntos. Fomos jantar juntos num desses restaurantes luxuosos da cidade. A melhor amiga dela frequentava os tais restaurantes com os seus incontáveis namorados, pelo que a recomendou a ir comigo.
Eu estava furioso porque considerava o São Valentim um dia sobrestimado. Depois de meses e meses sem nenhuma demonstração de amor, ela me atirou um “eu te amo” e ainda pagou a conta sozinha. Isso me comoveria em tempos, mas eu sabia que não nos amávamos e, pior que isso, sabia como ela havia arranjado o dinheiro da conta.
Dois meses antes daquele estúpido jantar, eu descobri que ela transava com um trintão bem-sucedido. Na época fui consolado pelas palavras d'O Sétimo Juramento, dizia lá a autora que “ser traído amanhã, é viver mais um dia de ilusão. É melhor que a traição seja hoje para que a lealdade seja amanhã.” Confrontei a miúda, na esperança de garantir um amanhã de lealdade que nunca chegou de acontecer. Levei muito tempo a perceber o idealismo da frase.
Nossas irmãs são muito incompetentes no quesito da fidelidade. Enquanto eu trabalhava para o meu ignóbil patrão, nos turnos que ele bem entendia, minha noiva imitava a melhor amiga nas transas por troca de bens.
No entanto, eu entendia a minha noiva. Nunca a amei no verdadeiro sentido. Passei a maioria da minha vida esperando amar uma mulher ideal, como uma dessas personagens de filmes de comédia romântica de Hollywood, ignorando que um tipo muito magro e pobre que sou também não é o protótipo das garotas. Depois de uns tempos de sexo passageiro comigo, ela foi arrastada ao acaso para o lar dos meus pais, que sempre brigavam sem razões aparentes, ainda assim melhor que o da sua casa.
Amália sempre me aturou, desde os tempos em que eu ainda tinha manias de "intelectualizinho" de esquerda no desemprego, até hoje que sou um jovem sem nada de esquerdismo, vazio e pessimista. Seria de muita ingenuidade esperar que ela fosse fiel a um tipo como eu. A verdade é que ela era uma volátil sem opções além de mim, enquanto eu era um romântico solitário precisando de sexo. Nem me arriscaria a buscar uma outra garota, até porque como diz o ditado: “mais moída ou menos moída, é tudo farinha do mesmo saco”.
Quando retornei da transe da minha relação, ouvi o meu patrão gritando comigo sem parar. Por muito descuido, quebrei um prato com refeições. A regra da casa era clara, o prejuízo seria descontado do meu parco salário. E daí? Nada muda, nem no São Valentim tão lucrativo! Minha vida continuava miserável. Nem me dei ao trabalho de me desculpar, esperava apenas da minha hora de saída.
Já sabia bem o que faria naquela noite. Se a noite não fosse “abençoada” com a chuva, iria fumar, beber um pouco e depois procurar, no seu território, as praticantes da profissão mais antiga do mundo. Mesmo ainda sendo minha noiva, Amália provavelmente estaria num jantar com o maldito trintão. Assim por bem eu expectava, seria horrível encontrá-la onde iria mais tarde.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Opinião: AS MENTIRAS DO NOSSO TEMPO E O CAMINHO PARA O FUTURO

AS MENTIRAS DO NOSSO TEMPO E O CAMINHO PARA O FUTURO Créditos : AS por:Lino A. Guirrungo (Jan, 2019) Eu nasci pouco depois que...