quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Crónica:O Novo Ano Velho


O Novo Ano Velho
                                                        
                                                          porLino A. Guirrungo

Uma das maiores mentiras nas sociedades modernas é pensar que estamos protegidos pelas paredes das nossas casas. O mal é como o ar, está em todo lado. É horrível pensar assim no primeiro mês de um novo ano, já que recentemente renovamos as esperanças no réveillon.

Acabado de chegar à casa, ligo a televisão, depois de um dia igual aos outros: sair pelas ruas à procura de uma oportunidade de trabalho e nada. Fico feliz por não ter encontrado ninguém em casa. Moro sozinho, aliás, com o meu pai (há dois anos que ele se divorciou, sendo eu o único filho maluco que decidiu ficar) e deprimo-me sempre que vejo o seu rosto taciturno e cansado. Pior que isso é quando ele faz aquela pergunta super constrangedora de se responder: “Filho, então, já conseguiste um emprego?” Não culpo o velho, ele é uma boa pessoa, a vida é que é muito complicada.

Não busco nada de especial na tela, ao que deixo ficar o canal que achei em primeiro. Está saindo um programa de debate, desses com um apresentador e três comentaristas. O debate é sobre o que se pode esperar de 2017 para Moçambique e para o mundo. Passados quinze minutos, farto-me de ouvir aqueles tipos e desligo a TV. Não que o tema seja irrelevante, mas simplesmente estou sem saco para ouvir a repetição da ladainha dos nossos comentaristas, tipicamente parciais e superficiais. Observo a sala quase mórbida com o silêncio e, de seguida, vou ao meu quarto pensativo.

No mundo, os cipriotas estão tentando se reunificar; um ditador em Gâmbia, que havia aceitado a derrota nas eleições em 2016, não quer abandonar o poder; um tipo porreiro, que fala português, vai liderar a ONU; os norte-coreanos dizem que já podem testar o “brinquedo” que há muito desejavam: um míssil intercontinental capaz de atingir a costa norte-americana; a Venezuela está de rastos; os brasileiros já esqueceram o impeachment a Dilma enquanto os sul-coreanos ainda festejam a imitação da moda brasileira. Isso na tentativa de ignorar os assuntos mais badalados: ataques terroristas na Europa; a desgraça da guerra na Síria; a saída do primeiro presidente afro-americano da presidência dos EUA e a ascensão de um controverso milionário à mesma presidência.

Aqui em Moçambique está tudo nos eixos ou nos extremos. Depois de muitas rondas de negociações de paz, que só o meu pai sabe dizer ao certo o número (ele vê telejornal como um viciado em drogas, nem o critico porque o velho nada tem para se divertir), Dhlakama pôs temporariamente ordem no país. Foi só ele querer parar com tudo que os seus homens lhe obedeceram. Há uma trégua provisória na nossa guerra ou, como diz a imprensa nacional, na “tensão político-militar”. O segundo termo é falso porque, vendo pessoas mortas depois que esta besteira de guerra recomeçou, é preciso ser ou ignorante ou insensível para chamar a tudo isso de “tensão”.

Depois de muito barulho com a descoberta, em abril de 2016, das altas dívidas do Estado escondidas, Moçambique ainda aguarda o desfecho do caso neste novo ano. Eu já estou apostando no desfecho. O bolo será mais restrições, mais desemprego, mais comentaristas na TV a analisarem um eventual desaire económico do país e menos projectos sociais do Governo. A cereja no topo do bolo: ninguém será preso pela falcatrua das dívidas escondidas (ou, pelo menos, quem interessa mesmo ser preso).

Da última vez que vi o Presidente da República (PR), Filipe Nyusi, estava a discursar na Assembleia. Ao contrário do meu pai, poucas vezes vejo televisão daí que raramente vejo o PR. No tal discurso, o Presidente afirmava que “o Estado da Nação mantém-se firme”. Contrariamente a muitos, eu não achei a frase má, mas considerei a expressão como a maior piada de 2016. Nem o Presidente norte-americano, Barack Obama, fez-me rir tanto na Noite dos Correspondentes de 2016. Sempre disseram-me que o nosso Presidente era “boa pinta” e com um bom senso de humor, agora não tenho dúvidas.

Para afirmar aquilo, com aquela convicção, era preciso muita coragem e uma dose de descaramento que só os políticos têm. A verdade é que não entendo como eles falam por nós se não sabem sequer se comemos ou não antes de dormir. A propósito, agora entendo por que o meu velho não está em casa. Foi jantar no lar da minha irmã, por aqui não haverá jantar hoje. Nada de especial.

Enquanto isso, os crimes “banais” continuam, como o roubo na casa do meu vizinho justamente no Dia da Família (Natal). Na TV, apresentadores e telespetadores julgam pessoas antes mesmo destas aparecem nos tribunais. “Há que balançar o país”, é o argumento de um desses programas televisivos. É triste e pueril, mas a rotina é bastante reconfortante, todo mundo gosta de julgar e falar mal dos outros.

Tenho de admitir que há outras balelas mais grotescas nos canais de TV de sinal aberto em Moçambique. A minha outra irmã (como também boa parte das alunas do Secundário) reprovou, mesmo tendo obedecido, à norma da saia larga que o anterior Ministro da Educação e Desenvolvimento Humano, Jorge Ferrão, impôs. Ainda bem que foi demitido, não por eu achar que a sua substituição faça grande diferença, mas porque penso que é ruim alguém atribuir à medida de uma saia o mau desempenho escolar. O ex-ministro é um homem bem-intencionado e entendi as suas motivações, mas acho que ele acreditou em demasia que os fins justificam os meios. Há quem culpa o tamanho das saias pelos assédios e violações sexuais, enfim, são mais uns a atribuir a culpa às vítimas e não aos agressores.

Não me espantaria se agora culpassem o pacato povo pelas dívidas escondidas e não aos governantes. Nessa lógica de culpabilização da vítima, diriam que o povo não foi suficientemente um bom escrutinador do Governo, daí as trapaças e falcatruas. Risível como é óbvio.

Sinceramente, não espero muito deste ano. Provavelmente vai ser melhor para alguns países e pior para outros. Gosto da ideia de um falante de português a liderar a ONU, mas a paz da humanidade nunca foi prioridade para os homens no poder, então, continuará a haver guerras pelo mundo fora. Cá em casa, o país continuará bem nos limiares do Índice do Desenvolvimento Humano e a guerra vai acabar quando Dhlakama e os vermelhos quiserem.

Enquanto isso, tenho de arranjar um emprego. Esse papo dos políticos gananciosos e pessoas sem noção do “Moçambique real” falarem de os jovens terem de ir aos distritos (como se os jovens não quisessem) é ridículo. Há pouca atratividade em ir ao interior dos distritos, caso contrário íamos em massa. Que perguntem ao meu melhor amigo, que é professor do aparelho do Estado, como ele vive no interior da província de Nampula? Resumindo, sem água potável por perto, sem eletricidade, bens de consumo absurdamente inflacionados e, o pior, pouco acesso à informação. Diante dessas evidências, não entendo como ainda há pessoas que ficam atónitas com a crescente periurbanização do país. Autoemprego? Surpreendo-me como eu e o meu pai vivemos sem emprego formal (para não falar da maioria dos moçambicanos). Óbvio que nos arranjamos. Talvez eu venha a ser um Bill Gates com esses bicos, já houve quem enriqueceu com o negócio dos patos ou dos doces nestas terras do Índico. Bom, pelo menos é o que o povo diz sobre esses exemplos de “sucesso” empresarial de moçambicanos.


Os povos geralmente são fortes e corajosos. Sabem bem o que esperar de um novo ano: enfrentar os problemas do ano anterior e velho. Os moçambicanos comuns acreditam numa máxima da personagem, que é de um livro que gosto muito, chamada Atticus Finch. Finch diz que “coragem é sabermos que estamos vencidos à partida, mas recomeçar na mesma e avançar incondicionalmente até ao fim. Raramente se ganha, mas às vezes conseguimos”.

Espero mesmo que Moçambique e nós, o seu povo, consigamos singrar. Os políticos e os comentaristas de TV podem se ferrar (menos a pouquíssima minoria séria desse grupo é claro).

Estou cansado e meio com fome. Deve ser por isso que pensei nessas bobagens. Vou dormir, amanhã é um novo dia.


(Janeiro, 2017)

LAG//EAC

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