quinta-feira, 2 de março de 2017

Crónic:UMA CARTA AO MR. KAYA KWANGA



UMA CARTA AO MR. KAYA KWANGA
Autor: Sabino Chilengue


“Caro senhor,

Não foi uma decisão fácil te escrever esta carta. Escrevi-a porque o senhor precisa saber sobre o sucedido no “KayaKwaku”, no passado dia 16 de Dezembro, do ano findo. Já devia saber que propaganda falsa é crime. 

Sei que isso perde efeito num “país do deixa andar ou queixa andar”, na preferência de Mia Couto, (como o nosso, por isso, evidentemente não poupou esforços em o fazer).

O dia a que me refiro foi preparado com tanto fulgor pelas minhas colegas apelidadas de “comissão”, contudo, a primeira impressão que não escapou à nossa lógica, deixou claro que teríamos sido enganados pela propaganda falsa e criminosa que o senhor protagonizou.

 Depois de reunidos para a realização da festa dos funcionários, no final do ano, no KayaKwaku, momento que esgotou a nossa ansiedade, desde que se despertou a noção da chegada dos 366 dias. 

A propaganda falsa ficou patenteada quando uma voz dócil honestamente nos convidou ao buffet para, enfim, assassinar a fome que nos atormentava desde que o sol se tinha posto para nós. Todos salivavam por curiosidades na superfície do paladar, lembrando-me cãezinhos do fisiologista russo Pavlov em seu “Condicionamento Clássico”. 

Caríssimo, para colocar uma circunstância atenuante no teu bárbaro crime, quero confessar que tudo que compunha o buffet exalava um bom aroma – facto que arrobustou a nossa espectativa em saborear a comida. Mas, nem tudo foi mar de rosas, não me vou esquecer do buffet que tinha alojado o “SteakDiver” - uma carne mergulhadora que sequer provei pela expressão facial dos meus colegas quando abriram a tampa desse buffet.

 Ouvi rumores de que se tratava de carne de cabrito e me fartei de rir porque não sabia que os cabritos gostavam de nadar e que assim eram homenageados depois de mortos. A verdade é que poucos degustaram o teu SteakDiver, era preciso muita coragem para enfrentar a imensidão daquele mar. 

Falando do mar, um outro facto que corroborou com a nossa suspeita de que o senhor queria desbaratar o nosso dia é tocante ao grandíssimo peixe que a todos hipnotizou, o qual estava nos confins do lado esquerdo da tão comprida mesa que suportava o buffet. Igualmente senhor, não provei esse prato, os que o provaram esboçaram caras amaldiçoadas e afirmaram que o peixe estava “tocado” e obviamente incomestível. Não bastou o teu SteakDiver? 

Não tardou para que a minha colega fosse reclamar a um dos funcionários que circulava naquela sala, este tendo retirado o peixão e comunicado a um outro jovem sobre o qual não sei dizer se é teu filho, neto, sobrinho ou algo parecido. Sei dizer apenas que o jovem é alto e aproximou-se à minha colega com cara de poucos amigos, amarrotada e amedrontadora procurando saber o que se passava com o peixe. Coitada da minha colega, ficou intimidada e disse que se não existia nenhum problema com o peixe, que fosse devolvido para onde estava.

 Sei que está agora gargalhando com isso, é de facto lamentável, quando a passividade nos engole diante dos nossos direitos, alias, teu plano de aniquilar a nossa diversão e nos trazer o enfado estava se estabilizando com o teu capanga ali nos assustando.

Todavia, trago nos parágrafos a seguir, más notícias para si, quero acreditar que pensa em abdicar de ler esta carta. Meu senhor, nem com todos esses golpes baixos que nos tinham preparado podia nos tirar a alegria de festejarmos pelo mínimo descanso referente ao árduo trabalho que traçou os nossos dias durante aquele ano.

Como diz o filósofo Espinosa, a alegria é o aumento da potência de agir, é sair do estado de impotência para o de maior capacidade de agir, assim, foi esta potência que nos fez enfrentar os teus Planos Estratégicos e Sádicos de 2016 (PES – 2016), de acabar com tudo que tínhamos carinhosamente planificado. Para o teu conhecimento, comemos do bom e do melhor que tinha, dançámos, bebemos, rimo-nos e cavalgámos sob conversas excitantes e alegradoras sobre nossas vidas, trabalho e um pouco de tudo. 

Dissolvemo-nos das agruras que nos escoltaram no correr deste ano, provamos da nossa insanidade e, por fim, nos esquecemos dos nossos papéis profissionais. Não mais nos sentíamos como motoristas, assistentes, oficiais ou directores. Não mais nos lembrávamos dos Isuzu’s, D4D’s, procurments, líderes comunitários, lanches reforçados, Mpesas, apresentação por emails dos novos colegas, planeamento familiar, Wifi’s, discussões de dados e Timesheets. Tudo foi trocado pelo prazer de sabermos que vale a pena viver. 

Aumentámos a nossa potência e capacidade de agir, sem máscaras nem títulos de senhores doutores confundido com a nossa auto-estima. Pena que isso só acontece uma vez em cada ano. Fizemos dos nossos amigos ocultos parceiros visíveis e oferecemo-los presentes que expressavam os nossos sentimentos, emoções e preconceitos que tínhamos sobre os mesmos.

 Contemplámos indestrutíveis paisagens dos corpos curvilíneos das nossas colegas vestidas à escarlate, dançando psicoticamente as músicas que os DJ’s passavam. Senhor, fizemos tudo! Livramo-nos da Síndrome de Burnout. Esquecemo-nos compulsivamente da ética, ou seja, dos olhos sociais, fomos homens e mulheres no estado natural ante o condicionamento social, daí que explorámos ao máximo a nossa potência de agir e viver. 

Ali, criamos as nossas próprias regras, a nossa própria cultura – de sermos felizes com o que éramos e fazíamos. Enfim, transformámos o KayaKwaku em um universo infinito de emoções, prazeres e devaneios livres da consciência do certo e do errado, que possivelmente apequenaria a nossa capacidade e potência de convertermos os nossos pensamentos e sentimentos em acções.

Para terminar, meu caríssimo senhor, endereço os meus mais profundos cumprimentos a si e a toda sua equipa: aos ratos que circulavam por debaixo das nossas mesas e roíam restos de comida no jardim do KayaKwaku, aos gatos que se desentendiam amargamente à beira da sua piscina e a todos rastejantes que passeavam de fininho a sala em que estávamos. Só lamento porque nem todas as baratas receberão os meus cumprimentos dado que algumas foram impiedosamente mastigadas durante o buffet, mas saúda as que escaparam. Espero igualmente um convite seu para brindarmos a sua desilusão.

 Atenciosamente,
O teu assíduo cliente.”

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