quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A Promessa

A Promessa

Por: Jorge Azevedo Zamba


                                                  Anteontem

Fui educado para acreditar no concreto e nas minhas convicções. Antes do meu nascimento, o mundo já havia assumido um semblante que deus desconhece. Confesso que morei numa igreja, na verdade era um dos confidentes do pastor. Mas no dia que me faltou dinheiro fui escorraçado da casa de deus. E juro que tentei até o suicídio. Seria um descanso eterno que romperia o incómodo que eu constituía para os outros. Seria uma oportunidade flagrante para levar comigo as lamentações e frustrações da vida.



Voltei para casa, a minha verdadeira casa. Quando cheguei naquela palhota, ressuscitei a vontade de suicidar-me e comecei a preparar todo instrumento útil para quem pretende acabar consigo mesmo. Tinha medo, muito medo. Mas primeiro amarrei uma corda gigante num dos barrotes e logo depois procurei por uma cadeira. Agora nada importava. Quanto ao meu filho, saberia se cuidar.

Antes de prosseguir apercebi-me que durante a minha ausência a poeira embrulhou tudo que tinha, até a única cadeira que eu queria usar como um dos instrumentos para o suicídio. Mas nada importava, afinal de contas era o meu último dia no mundo dos vivos.

Antes de subir na cadeira e consumar a fúria, pensei em escrever uma carta a explicar as motivações do suicídio, mas a mente lembrou-me que não tinha nenhuma motivação fundamentalmente aceitável, se não a de que estava a lutar pela vida como se ela fosse eterna. Na verdade, estava cansado de lutar por ela, só isso. Desisti porque pensei que a verdadeira carta seria redigida pelo meu cadáver pendurado num dos barrotes.   

Amarrei a corda ao pescoço. A porta sugeriu-me que a fechasse imediatamente. Desatei a corda e fui fechá-la. Jurei que mesmo se deus viesse pedir licença recusaria, queria acabar logo comigo. Voltei a amarrar a corda ao pescoço. Quando estava prestes a dar um chute na cadeira que suportava o meu corpo, alguém bateu na porta. A tensão da porta desatou a corda que havia enrolado quase todo o pescoço, tive de atender. Mas, antes disso, escondi todo o material.
  
Não vou mentir. A pior dor não é suicídio, mas sim é ser descoberto a tentar suicidar-se e, por isso, fiz de tudo para disfarçar o rosto falecido e as marcas da corda no pescoço. Os pés denunciavam que não me sentia bem. Tentei medir a fúria que tinha da vida e logo suicidei a ideia de querer me suicidar.

A pessoa que bateu na porta era um camarada. Ainda que não fossemos camaradas, chamávamo-nos de camaradas, era típico na minha época. Foi-me dito que expulsámos o colonialismo, agora devíamos expulsar o Lambotismo, Imperialismo e Obscurantismo.

Tive um convite formal para fazer parte do Grupo Dinamizador. Na verdade tive dois por que quem fizesse parte deste grupo não devia ser afilhado de apartidarismo. Bom, não queria mas todo homem válido aderia à mesma fileira. Em momentos de embriaguez emocional, pensava que estava a servir à pátria. Mas quando a embriaguez passava, num universo que entoava hinos revolucionários queria manifestar o meu eu, mas ninguém permitia.

Vou confessar uma coisa. Talvez, se estivesse vivo, não seria capaz de falar nesses moldes. Como dinamizador era excelente por que fazia tudo o que os camaradas me delegavam. Mobilizei as massas populares para aderirem à revolução. Mas encontrei a morte a lutar pela manutenção da ideologia do partido de vanguarda. Não vou contar como aconteceu, a minha morte foi vergonhosa. Mas enfim, agora que comecei vou contar (estou morto e, apenas os loucos protestariam). Eu e um camarada cujo nome a morte roubou.

Durante a nossa rotina vimos um electrodoméstico, vou ser mais directo, apanhámos um congelador 
num apartamento abandonado. Eu fui o primeiro a ver e ele correu para abraçar o electrodoméstico. Nada me restou senão lutar pela minha sorte e o confronto custou a minha vida. No dia em que morri, enquanto me esbofeteavam mortalmente, conseguia ouvir a voz de uns três ou quatro camaradas.


Ontem
Eu morri há umas três décadas, não tenho certeza. Mas para o meu filho continuo vivo e, ele acha que determino o futuro da sua geração, se bem que eu gostaria. Mas ele ainda tem sorte. Passados uns anos, foi procurado para servir aos interesses da pátria, devia pôr as roupas de um militar. Se eu dissesse que me dá orgulho como filho, seria uma inverdade.

O seu tempo era favorável para renunciar comodismos. Fiquei perplexo ao ver a mudança da abordagem política. Agora, o meu filho em cumplicidade com os superiores hierárquicos chamava de volta o que outrora condenávamos: O Imperialismo, Lambebotismo e Obscurantismo.

Mensalmente o meu filho visita-me nos meus aposentos eternos. Ainda que condene esse acto, ele tem a sua crença e não posso deter isso. É estranho. Pensei que soubesse que quando vivo eu não bebia.

Durante a cerimónia jorra vinho na minha cabeça. Claramente que não me embriago porque estou morto. Como queria responder aos pedidos do meu filho. Eu morri a sonhar uma sociedade que promovesse uma luta contínua pela democracia. Vejo que morremos juntos, eu e a minha utopia.

Hoje
Os meus netos crescem indiferentes. Aqueles que prometeram uma sociedade igualitária e democrática continuam com as promessas. Estou morto, mas ainda é-me possível ver certos eventos.
Queria ter um poder malicioso para chamar à atenção dos camaradas que mentiram e continuam a mentir. Os mais velhos e jovens na política exprimem discursos catastróficos. Até os vizinhos do aposento eterno opõem-se às manias dos oportunistas acomodados na política.

Um dos netos mais atentos tem lido sempre os meus escritos, essa é a outra confissão. Quando vivo fui aspirante da poesia e romance e, ainda sou. Por isso, deixei vários textos que na altura não foi possível partilhar com os camaradas, até por que se tivesse tido ousadia de partilhar teria morrido um

pouco antes. Então, eu dizia que um dos meus netos começa a constatar que a expressão: LUTAMOS PELA VIDA COMO SE ELA FOSSE ETERNA, tem diversas interpretações políticas e económicas. 
Não quero que o meu neto morra num confronto por um congelador. Ela merece ser um intelectual que um dia poderá denunciar a podridão do sistema. Precisará de provas e algumas estão nos meus escritos e os que extraviei enquanto dinamizador. Terá de sobreviver na indiferença e na tentação contra os arrojados.

Enfim…
Mesmo neste aposento que a maioria teme, continuo a sonhar e quero ver os meus netos num país livre da monarquia absoluta.  


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