terça-feira, 6 de setembro de 2016

Crónica:Entre Escrita e Cigarros


Entre Escrita e Cigarros


Autor: Albet Massango

Sentado, mais um dia, na mesma poltrona que me acolhe quando sinto a necessidade de repousar as minhas longas pernas, que, no entanto, não chegam a se comparar ao pescoço duma girafa miúda, tento escrever.



Tento matutar para que alguma ideia surja, entretanto, a mente se mostra incapaz de me munir de argumentos para expressar o que sinto, uma espécie de tédio misturado com saudades de algo que ainda virá.

Enquanto não me surgem ideias, olho para as quatro paredes esverdeadas, onde gotas de água escorrem quando chove. Do lado esquerdo, onde fica uma pequena estante de livros e cadernos usados há anos, lobrigo as pequenas baratas lutando pela sua existência, daí pergunto-me, mata-las ou não? Pois qualquer homem são aniquilava-as, todavia, paro simplesmente absorto nos meus pensamentos. Talvez não goze duma boa saúde mental.
Estando ainda no quarto, do lado de fora, vinham vozes misturadas, algumas grossas e outras sibilantes. Bem, se este texto fosse um tratado linguístico, em fonética e fonologia, dir-te-ia se os sons, provenientes de fora, eram bilabiais, alveolares, velares, palatais ou glotais. Entretanto, uma vez que não estamos naquela ciência parida por Saussure, deixemos isso para trás.
Ao reflectir sobre uma conversa que tivera com um amigo, há alguns meses, que não vêem para a memória agora, em que falávamos dos clássicos, desde os do mundo da música ao cinema, lembro-me de termos mencionado o nome de Miles Davis, aquele monstro do jazz.
Na conversa, o meu amigo, que por acaso o seu nome é Amigo, dissera que Davis, para compor as suas melodias, buscava inspiração nas drogas e na sua amada esposa, esta última que depois o largou.
Assim sendo, na tentativa de ganhar inspiração para escrever, e pensando na conversa que tivera com o Amigo, finamente pus-me fora do quarto à procura dum maço de cigarros, não importava a marca dos mesmos, o que eu queria era fumar para ganhar inspiração à semelhança do velho Miles, quando compôs o Kind of  Blue.
Na barraca, ao pé da minha residência, comprei dois maços de cigarros e retornei ao quarto, desta vez a porta foi a janela, pois quando sai me esqueci da chave lá dentro.
Após um esforço titânico para arrombar a enrugada janela, que não estava gradeada, entrei no quarto mas com o braço esquerdo ensanguentado, pois, durante o arrombamento, um vidro fragmentara-se em pedaços ínfimos e, dai, um caco penetrara no braço de forma agressiva e macabra.
Do estendal, onde ficam as minhas vestimentas, puxei uma toalha, duma cor não muito comum, para enxugar aquele líquido encarnado que ondulava na penugem do meu braço.                               
Passados minutos dum curativo caseiro, revitalizei as energias e sentei-me novamente naquela mesma poltrona, de forma meticulosa, para não machucar o braço quase assassinado pelo maldito caco.
Peguei o teclado para escrever, mas, rapidamente, me lembrei que estavam comigo dois maços de cigarros para a busca de inspiração. Tirei os maços da algibeira traseira das calças, puxei o fósforo que estava na cabeça do monitor e acendi o primeiro cigarro, que foi fumado até à morte.
Senti que vinha a inspiração, daí arranjei melhor a poltrona e puxei o teclado daquele meu computador, para escrever. Redigi o primeiro parágrafo, o segundo e o terceiro e, de repente, fiquei sem ideias. Peguei no maço novamente, fumei mais um cigarro, logo, deu-me vontade de fumar mais um, mais dois até que esgotou-se o primeiro maço.
Quando começava a fumar o quinto cigarro, do segundo maço, mais ideias e palavras surgiam. Senti que a escrita estava mesmo a fluir, escrevi mais um parágrafo, mais dois, mais três, até terminar o texto que tu lês agora, intitulado Entre a Escrita e o Cigarro. 
                                           
Dentre várias dicotomias, nomeadamente, o céu e a terra, o belo e o feio, o forte e o fraco, entre outras, nada mais me interessa senão a leitura e a escrita, dois processos complexos que se completam, tal como a ciência e o senso comum.
AM/AM

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